Em 3 anos, quintuplica índice de categorias com salário comido por inflação

Em 2018, apenas 9% dos acordos salariais ficaram abaixo da inflação; em 2021, esse índice saltou 5 vezes, indo a 47% (Por Fabrício de Castro)


sexta-feira abril 8, 2022

Com a economia fraca, trabalhadores da iniciativa privada enfrentam dificuldades para reajustar salários acima da inflação. Houve uma piora acentuada em três anos: em 2018, apenas 9% das categorias não haviam conseguido aumento além da inflação. Em 2021, o índice cresceu mais de cinco vezes, para 47%, segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).

A piora coincide com o período da pandemia de covid-19. Especialistas ouvidos pelo UOL afirmam que a inflação acelerada e a retomada lenta da economia são fatores que têm prejudicado os empregados nas negociações.

Os dados mostram que em 2021 apenas 15% dos reajustes negociados resultaram em ganhos reais (acima da inflação). Outros 47% dos acordos ficaram abaixo do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), que serve de referência para reajustes salariais, enquanto 38% tiveram correções exatamente conforme a inflação (nem ganharam nem perderam).

Os percentuais contrastam com o cenário de antes da covid-19. Em 2018, ainda no governo de Michel Temer, 75% dos reajustes ficaram acima da inflação, enquanto 9% não repuseram as perdas. Outros 16% tiveram reajustes iguais ao INPC.

Este ano também está ruim. Em fevereiro (dados mais recentes do Dieese), 61% dos reajustes ficaram abaixo da inflação, considerando 119 acordos coletivos com data-base naquele mês. Outros 24% ficaram acima do INPC acumulado e 15% apenas compensaram a inflação.

Os números do Dieese são atualizados a cada mês, conforme a data-base de negociação de cada categoria. Isso significa que, se uma categoria com data-base em fevereiro fechar acordo apenas nos meses seguintes, o resultado é computado no mês de fevereiro posteriormente, o que pode alterar o porcentual atual.

Na prática, o que se viu nos últimos anos foi uma inversão de tendência, com os trabalhadores perdendo poder de compra de seus salários. Os reajustes abaixo da inflação, que antes eram exceções, tornaram-se comuns nas empresas.

A ausência de crescimento econômico e de um projeto de desenvolvimento tem levado ao crescimento do desemprego e à precarização do mercado de trabalho. Mais recentemente, de 2021 para cá, houve crescimento da inflação, o que torna a reposição salarial ainda mais difícil.
Antonio Corrêa de Lacerda, economista

Pandemia tornou reposição salarial um desafio Os efeitos da pandemia de covid-19 sobre as empresas e o mercado de trabalho tornaram a reposição salarial um desafio para os trabalhadores.

De acordo com o supervisor técnico do escritório do Dieese em São Paulo, Victor Pagani, durante a pandemia, a prioridade nas negociações coletivas deixou de ser o reajuste salarial e passou a ser a proteção do emprego e da saúde dos trabalhadores.

Com as empresas também em dificuldades, em função do isolamento social, os reajustes acima da inflação se tornaram mais raros.

Passada a fase mais intensa da pandemia, com o avanço da vacinação, há uma retomada da atividade econômica nos últimos meses. Assim, o foco principal nas negociações voltou a ser a questão salarial.

Ainda assim, é possível verificar que a tendência mais geral tem sido de reajustes abaixo do INPC ou reposição apenas da inflação passada, sem ganhos reais. Antes da pandemia, a maior parte dos reajustes previa ganhos.

Empresas ainda com dificuldades
O economista Renan Gomes de Pieri, professor da FGV/Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas), afirma que um dos fatores para reajustes abaixo da inflação é que as empresas ainda estão inseguras quanto ao futuro.

As empresas estão mais pessimistas em relação ao crescimento econômico neste ano e no ano que vem. Se a percepção é ruim, é natural que elas procurem segurar os salários dos trabalhadores. Além de não haver segurança sobre o que vem pela frente, as empresas têm passivos grandes. Muitas tiveram que se endividar na pandemia para manter operações.
Renan Gomes de Pieri, economista da FGV/Eaesp

Outro fator que pesa nas negociações salariais é o avanço mais recente da inflação. O INPC acumulado em 12 meses, conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), tem superado os 10%:

Variação do INPC em 12 meses
Agosto de 2021: +10,42%
Setembro de 2021: +10,78%
Outubro de 2021: +11,08%
Novembro de 2021: +10,96%
Dezembro de 2021: +10,16%
Janeiro de 2022: +10,60%
Fevereiro de 2022: +10,80%

Assim, as negociações salariais que resultaram em reposição inflacionária nos últimos meses levaram a um aumento de pelo menos 10% da folha das empresas —um custo relevante. Nas discussões, as empresas levam esse impacto em conta.

“Quanto maior for a taxa de inflação, maior a distorção que ela causa na economia. Embora muitas empresas reajustem seus preços na média dos 10% de inflação, muitas delas não conseguem reajustar ou demoram a fazer isso”, afirma Pieri. Essa pode ser uma dificuldade para aumentar salários na outra ponta.

“O próprio fato de a inflação ser mais alta gera um espaço de barganha para as empresas. Elas negociam com os trabalhadores aumentos maiores, ainda que não reponham totalmente a inflação”, acrescenta o economista.

Pressão maior dos trabalhadores
Com a retomada da atividade econômica, a expectativa de Victor Pagani, do Dieese, é de que haja aumento da pressão na iniciativa privada por aumentos salariais. Segundo ele, isso vai se intensificar em função da inflação, que está na casa dos dois dígitos.

Pagani afirma que, entre os trabalhadores, há uma espécie de “demanda reprimida” por maiores salários, após dois anos de crise.

O fenômeno é semelhante ao visto entre os servidores públicos federais civis, que desde dezembro pressionam o governo por reajustes.

Vemos em algumas categorias um ímpeto maior para buscar a reposição da inflação. Os profissionais da área química no estado de São Paulo fecharam reajuste pelo INPC na convenção coletiva com o sindicato da indústria farmacêutica, por exemplo. Em que pese o cenário complicado, categorias mais organizadas, com mais tradição negocial, podem ter reposição da inflação.
Victor Pagani, supervisor técnico Dieese-S

Pagani diz que os reajustes vão depender da capacidade de mobilização dos trabalhadores. “A perspectiva é de acirramento do conflito distributivo. Talvez até com impasses, paralisações e greves”, afirma.

Segundo o supervisor técnico do Dieese, a inflação alta acaba por favorecer as mobilizações. “É mais fácil o trabalhador se mobilizar para um reajuste de 12% do que para um de 4%”, declara.

Desemprego elevado favorece empresas na negociação
O economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), afirma que o desemprego alto favorece as empresas nas negociações.

Os dados do IBGE indicam que, no quarto trimestre de 2021, o Brasil tinha 12 milhões de desempregados e outros 4,8 milhões de desalentados (pessoas que gostariam de trabalhar, mas que não procuraram emprego por achar que não encontrariam).

“A soma de desocupados, desalentados e subocupados no Brasil chega a 29 milhões de pessoas”, diz Lacerda. “Ou seja, a oferta e a procura, base para formação do preço do trabalho, é francamente favorável ao empregador. Isso diminui muito a força de negociação do trabalhador e dos sindicatos.”

Para Pieri, da FGV, a situação não vai se alterar no curto prazo. “A recomposição de salários vai levar alguns anos. E isso tem tudo a ver com a baixa expectativa de crescimento do país”, afirma. “Só quando as empresas tiverem que competir por trabalhadores é que teremos reajustes expressivos.” (Fonte: UOL)