Justiça para os mais necessitados pode ser extinta no Brasil
O Projeto de Lei 3914/19 e a MP de nº 1045/21 ao limitar o poder processual do juiz traz em seus textos dispositivos inconstitucionais, que dificultarão o acesso à Justiça da camada mais pobre da população. (Por Marta Gueller)
quinta-feira agosto 19, 2021
Atualmente, o acesso aos Juizados Especiais Federais independe, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas, por força da aplicação do Art. 54 da Lei nº 9.099/1995. Na Justiça Federal, nos processos que tramitam perante as varas federais, aquele que se declarar necessitado poderá pedir o benefício da gratuidade da Justiça.
O Projeto de Lei 3914/19, recentemente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, restringe o benefício da gratuidade da Justiça, limitando-o ao trabalhador que comprovar miserabilidade, exigindo do segurado, por exemplo, o pagamento de perícia médica, caso tenha a necessidade de acionar a Justiça para comprovar incapacidade para o trabalho.
Mas não é só. Medida Provisória de nº 1045/21, em discussão no Senado Federal, propõe alteração da legislação trabalhista, com consequências previdenciárias, relacionadas também ao acesso à Justiça, limitando a Justiça Gratuita, inclusive nos Juizados Especiais Federais, tão somente aqueles que tenham renda mensal de meio salário-mínimo (R$ 550,00) ou renda familiar de até três salários-mínimos (R$ 3.300,00) ou, ainda àqueles que estiverem incluídos no Cadastro Único para acesso dos programas de assistência social.
Medida Provisória não tem o poder de alterar o Código de Processo Civil. O acesso à justiça está assegurado no artigo 5º da CF/88 não podendo ser fixado apenas pela renda do autor ou réu de uma demanda. A proposta, nos moldes acima referidos, restringirá o acesso à Justiça de grande parte dos brasileiros, na remota e improvável hipótese de vir a ser aprovada.
O destinatário da prova é o magistrado, cabendo a ele, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias (artigo 130 do CPC). Sendo o juiz o destinatário da prova, somente a ele cumpre aferir sobre a necessidade ou não de sua realização.
Da mesma forma somente ao juiz cabe, caso a caso, a apreciação do pedido de gratuidade feito pelo autor ou réu em processo judicial.
A renda sozinha não corresponde às condições sociais e econômicas do autor de uma demanda. E é aqui que entra a conhecida distinção entre a “pobreza de fato” e a chamada “pobreza jurídica”.
Cabe ao juiz, conforme os dados trazidos pelas partes em cada processo, analisar os ganhos e os gastos do cidadão que pleiteia o beneficio da gratuidade de justiça, considerando, inclusive, o percentual de imposto de renda e contribuição previdenciária incidentes sobre sua renda bruta e as despesas com moradia, educação, alimentação, vestuário, medicamentos, seguro saúde, lazer, a fim de verificar se o valor líquido que lhe restará no final do mês, será suficiente para o desembolso das custas processuais. Dessa forma, o juiz poderá enquadrar ou não o Autor como “juridicamente necessitado” em relação às custas e despesas do processo.
Não é apenas o miserável ou mesmo o economicamente pobre que pode obter a concessão da gratuidade perante o Judiciário.
Os Juizados Especiais Federais vêm garantindo, desde a sua criação, pela Lei 10.259, de 12 de julho de 2001, o papel de inclusão e de garantia de acesso à Justiça.
O pobre considera o direito como um inimigo, e não como um amigo. Para ele, o direito sempre o está privando de algo. Neste sentido vale lembrar a carta de José Saramago, lida no encerramento do II Fórum Social Mundial, em 2002:
“Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram, portanto, as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.” Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela de terras do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à proteção da justiça. Tudo sem resultado; a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem exceção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido… Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo… Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.
O Projeto de Lei 3914/19 e a MP de nº 1045/21 ao limitar o poder processual do juiz traz em seus textos dispositivos inconstitucionais, que dificultarão o acesso à Justiça da camada mais pobre da população, em momento de grave crise econômica e de ineficiência da administração pública que deixa de apreciar ou nega, indevidamente, inúmeros pedidos de benefícios de natureza alimentar. Milhares de segurados, distribuídos pelo Brasil, ficarão sem os benefícios a que fazem jus, para eles, assim como na aldeia em Florença, citada por Saramago, a Justiça passará a não existir. Vedado estará o seu acesso!
Por tal razão e diante da gravidade da situação acima narrada, a Comissão Especial de Direito Previdenciário, em conjunto com a Comissão Especial de Estudos de Perícias Forenses da OAB/SP, divulgaram notas pública e técnica contra as mudanças na legislação que, caso aprovadas pelo Congresso Nacional, irão dificultar o acesso dos cidadãos brasileiros ao Poder Judiciário. Da mesma forma a OAB/RS anunciou que atuará junto ao Conselho Federal e ao Congresso Nacional, a fim de que sejam revistos os termos do PL 3914/19, chamando a advocacia e toda a sociedade para participar do diálogo de construção de um acesso à Justiça amplo e condizente com o interesse da cidadania. (Fonte: Estadão)